quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Contrariando Borges

Se soubesse que faria tanto sucesso, teria falado sobre o sexto sentido muito antes. Um leitor me mandou um belo texto de Borges, que já conhecia mas reproduzo aqui para dividir com meus leitores.

Uma leitora colocou seu filho para lutar judô. Seis meses depois e o garoto fraturou o joelho numa queda. Outra disse que o marido voa de ultra-leve e teve um acidente que afetou sua coluna. Está em cadeira de rodas.

Um advogado bebeu e projetou o carro em um córrego a 160 por hora. O filho morreu e a esposa teve fraturas múltiplas. Infelizmente, diz ele, sobreviveu para sofrer o remorso da perda.

O ator Christopher Reeve fez no cinema o papel de Super-Homem, estava no auge da carreira. A continuação do filme que o imortalizara fez tanto sucesso quanto a primeira versão e ele era um super-astro. Resolveu saltar obstáculos em um evento de equitação, o cavalo refugou um salto e ele se projetou sobre o obstáculo, fraturando a coluna.

Passou os últimos dias em uma cadeira de rodas, fazendo campanha pela liberação de pesquisas com células-tronco.

Não há nenhuma regra ou campanha contra fazer rapel, saltar de pára-quedas, voar de asa-delta ou saltar no lombo de um cavalo de raça. Há gosto para todos esses esportes ou atividades radicais.

O que me interessa aqui é detectar aquele momento único, solitário, místico, em que alguém resolve: “vou participar desse exercício”. Ou, podendo circular pelo mundo gozando as bem-aventuranças da merecida fama, tomar a decisão final: “vou fazer esse salto”.

E, uma vez aceito o desafio, colher o resultado nefasto e aí meu objetivo é saber o que vai pela mente de uma desafortunada vítima: “por que estou aqui”? Não vale repetir a frase que sempre me estimulou a participar de todos os aparelhos e brinquedos da Disney: “ninguém vive essa emoção em seu lugar”.

Falo de decisões finais, decisões entre estar aqui, incólume, e terminar ali, mutilado. Ou morto.
Sei que estou, sem nenhuma autoridade literária, contrariando Jorge Luís Borges, que disse do alto de seus 85 anos.

“Se eu pudesse viver novamente minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais. Não mais tolo ainda do que tenho sido. Na verdade bem poucas coisas levaria a sério”.

“Seria menos higiênico. Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres, subiria mais montanhas, nadaria mais rios. Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e comeria menos lentilha. Teria mais problemas reais e menos problemas imaginários”.

”Eu fui uma dessas pessoas que viveu sensata e produtivamente cada minuto da vida. Claro que tive momentos de alegria. Mas se eu pudesse voltar a viver trataria de ter somente bons momentos. Porque se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos, não percas o agora”.

“Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termômetro, uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas. Se eu voltasse a viver, começaria a andar descalço no começo da primavera e continuaria assim até o fim do outono. Daria mais voltas na minha rua, contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças. Se tivesse outra vez uma vida pela frente”.

Mesmo lendo essas sábias palavras, relembro uma cena de cotidiano, ainda recente. Passei o dia viajando de carro pelo interior, fui até a fronteira e, já meia-noite, cheguei a Dourados e me confrontei com aquele momento de decisão de que falei acima: dirigir madrugada adentro até Campo Grande ou dormir e prosseguir pela manhã?

O sexto sentido me ordenou dormir, tomar um gostoso café da manhã no dia seguinte e, descansado, prosseguir a viagem. Hoje eu sei que há uma sólida sabedoria nas decisões sensatas. Não são aleatórias mas bem calculadas.

Se prosseguisse, passaria a madrugada viajando, chegaria (se chegasse) às 4, 5 da manhã em Campo Grande, cansadíssimo, para fazer o que? Dormir um pouco, apenas, acordar estourado e de mau humor. Ou seja, não valeria a jornada de puro risco por nenhuma vantagem.

No fim, peço licença a Borges para dizer que ambos temos razão. Ele justificava sua reflexão dizendo: “Mas vejam, já tenho 85 anos, estou cego e sei que vou morrer”. Quanto a mim, ainda não tenho 90 anos e estou vivo, por enquanto.

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